terça-feira, 3 de agosto de 2010

A filosofia de René Descartes

A metafísica como fundamento do conhecimento e da existência


Segundo Descartes, tudo aquilo que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores, pelos livros, pelas viagens e pelo convívio com outras pessoas não permitiu que chegasse à verdade e ao conhecimento. Ao final, conclui que tudo quanto aprendera, tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e incerto. Decide, então, não aceitar nenhum desses conhecimentos, a menos que pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança. Para isso, submete todos os conhecimentos existentes em sua época e os seus próprios a um exame crítico conhecido como dúvida metódica, declarando que só aceitará um conhecimento, uma idéia, um fato ou uma opinião se, passados pelo crivo da dúvida, revelarem-se indubitáveis para o pensamento puro. Ele os submete à análise, à dedução, à indução, ao raciocínio e conclui que, até o momento, há uma única verdade indubitável que poderá ser aceita e que deverá ser o ponto de partida para a reconstrução do edifício do saber. Essa única verdade é: “Penso, logo existo”, pois, se eu duvidar de que estou pensando, ainda estou pensando, visto que duvidar é uma maneira de pensar. A consciência do pensamento aparece, assim, como a primeira verdade indubitável que será o alicerce para todos os conhecimentos futuros.

Descartes criou um procedimento, a dúvida metódica, pela qual o sujeito do conhecimento, analisando cada um de seus conhecimentos, conhece e avalia as fontes e as causas de cada um, a forma e o conteúdo de cada um, a falsidade e a verdade de cada um e encontra meios para livrar-se de tudo quanto seja duvidoso perante o pensamento. Ao mesmo tempo, o pensamento oferece ao espírito um conjunto de regras que deverão ser obedecidas para que um conhecimento seja considerado verdadeiro. Para Descartes, o conhecimento sensível (isto é, sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem) é a causa do erro e deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual, parte das idéias inatas e controla (por meio de regras) as investigações filosóficas, científicas e técnicas.

Na história da Filosofia, o exemplo mais célebre de intuição intelectual é conhecido como o cogito cartesiano, isto é, a afirmação de Descartes: “Penso (cogito), logo existo”. De fato, quando penso, sei que estou pensando e não é preciso provar ou demonstrar isso, mesmo porque provar e demonstrar é pensar e para demonstrar e provar é preciso, primeiro, pensar e saber que se pensa. Quando digo: “Penso, logo existo”, estou simplesmente afirmando racionalmente que sei que sou um ser pensante ou que existo pensando, sem necessidade de provas e demonstrações. A intuição capta, num único ato intelectual, a verdade do pensamento pensando em si mesmo.


As ideias

Descartes discute a teoria das idéias inatas em várias de suas obras, mas as exposições mais conhecidas encontram-se em duas delas: no Discurso do método e nas Meditações metafísicas. Nelas, Descartes mostra que nosso espírito possui três tipos de idéias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade:

1. Idéias adventícias (isto é, vindas de fora) ou empíricas: são aquelas que se originam de nossas sensações, percepções, lembranças; são as idéias que nos vêm por termos tido a experiência sensorial ou sensível das coisas a que se referem. Por exemplo, a idéia de árvore, de pássaro, de instrumentos musicais, etc. São nossas idéias cotidianas e costumeiras, geralmente enganosas ou falsas, isto é, não correspondem à realidade das próprias coisas. Assim, andando à noite por uma floresta, vejo fantasmas. Quando raia o dia, descubro que eram galhos retorcidos de árvores que se mexiam sob o vento. Olho para o céu e vejo, pequeno, o Sol. Acredito, então, que é menor do que a Terra, até que os astrônomos provem racionalmente que ele é muito maior do que ela.

2. Idéias fictícias ou imaginação: são aquelas que criamos em nossa fantasia e imaginação, compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de idéias adventícias que estão em nossa memória. Por exemplo, cavalo alado, fadas, elfos, duendes, dragões, Super-Homem, unicórnio etc. São as fabulações das artes, da literatura, dos contos infantis, dos mitos, das superstições. Essas idéias nunca são verdadeiras, pois não correspondem a nada que exista realmente e sabemos que foram inventadas por nós, mesmo quando as recebemos já prontas de outros que as inventaram.

3. Idéias inatas: são aquelas que não poderiam vir de nossa experiência sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem poderiam vir de nossa fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para compô-las a partir de nossa memória.

As idéias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas. Por exemplo, a idéia do infinito (pois não temos qualquer experiência do infinito), as idéias matemáticas (a matemática pode trabalhar com a idéia de uma figura de mil lados, o quiliógono, e, no entanto, jamais tivemos e jamais teremos a percepção de uma figura de mil lados).

Essas idéias, diz Descartes, são “a assinatura do Criador” no espírito das criaturas racionais, e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade. Como as idéias inatas são colocadas em nosso espírito por Deus, serão sempre verdadeiras, isto é, sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e, graças a elas, podemos julgar quando uma idéia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as idéias fictícias são sempre falsas (não correspondem a nada fora de nós). Ainda segundo Descartes, as idéias inatas são as mais simples que possuímos (simples não quer dizer “fáceis”, e sim não-compostas de outras idéias). A mais famosa das idéias inatas cartesianas é o “Penso, logo existo”. Por serem simples, as idéias inatas são conhecidas por intuição e são elas o ponto de partida da dedução racional e da indução, que conhecem as idéias complexas ou compostas.


A tese central dos inatistas é a seguinte: se não possuirmos em nosso espírito a razão e a verdade, nunca teremos como saber se um conhecimento é verdadeiro ou falso, isto é, nunca saberemos se uma idéia corresponde ou não à realidade a que ela se refere. Não teremos um critério seguro para avaliar nossos conhecimentos.

A prova da existência de Deus

Fundamental dentro do sistema filosófico cartesiano é a existência de Deus. Apenas Ele garante a existência do mundo exterior ao eu que pensa. Então é necessário provar a existência de Deus. Descartes o faz por várias formas, entre elas, como dito acima, pelas ideias inatas e pelo conceito de perfeição. Apenas o que é perfeito possui todas as qualidades, incluindo a de existir, então Deus, o ser perfeito existe.

A dualidade da substância

O filósofo também postula a existência de duas substancias diferentes no homem: a Res pensans (coisa, substancia ou essência pensante imaterial) e a Res extensa (coisa, substancia ou essência extensa, a matéria). Assim, a separação permite a Descartes desenvolver toda a sua teoria considerando que o corpo pode ser comparável a uma máquina e as leis que o determinam são as mesmas aplicáveis a qualquer corpo físico, animado ou inanimado, artificial ou natural.

Sua posição é chamada de maquinismo ou mecanicismo e é aplicada em todo e qualquer experimento científico e técnico, desde a medicina até a mecânica.

Descartes considera que a realidade natural é regida por leis universais e necessárias do movimento, isto é, que a natureza é uma realidade mecânica. Considera também que as leis mecânicas ou leis do movimento elaboradas por sua filosofia ou por sua física são idéias racionais deduzidas de idéias inatas simples e verdadeiras.

Os problemas do inatismo

Quando comparamos a física de Descartes com a de Galileu, elaborada na mesma época, verificamos que a física galileana é oposta à cartesiana e é a que será provada e demonstrada verdadeira, a de Descartes sendo falsa. Como poderia isso acontecer, se as idéias da física cartesiana eram idéias inatas? Podemos então perceber quais são os dois grandes problemas do inatismo:

1. a própria razão pode mudar o conteúdo de idéias que eram consideradas universais e verdadeiras;

2. a própria razão pode provar que idéias racionais também podem ser falsas (é o caso da física cartesiana).

Se as idéias são racionais e verdadeiras, é porque correspondem à realidade. Ora, a realidade permanece a mesma e, no entanto, as idéias que a explicavam perderam a validade. Ou seja, o inatismo se depara com o problema da mudança das idéias, feita pela própria razão, e com o problema da falsidade das idéias, demonstrada pela própria razão.



Adaptado de Chauí, M. "Convite à Filosofia"

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